Esta resenha contém spoilers do primeiro livro da trilogia, Silo.
Sinopse:
Em um momento futuro, passados cerca de quarenta anos, o mundo ainda é como o conhecemos. O tempo continua sendo contado. A verdade não. Poucos sabem o que vai acontecer. E estão se preparando. Estão tentando nos proteger. Vão nos guiar por um caminho do qual não podemos retornar. Um caminho que levará à destruição. A sobrevivência dos seres humanos depende do deslocamento de milhares de pessoas para uma enorme cidade subterrânea, com gigantescos telões transmitindo as imagens desoladoras do mundo do lado de fora. E ninguém está autorizado a sair. A história do silo está prestes a ser escrita. O futuro já vai começar.
Fonte: Intrínseca
A obra de estreia de Hugh Howey, Silo, me deixou absurdamente empolgada, tanto com a história como com o talento do autor, então me interessei muito em ler a continuação, Ordem, que é o volume 2 de uma trilogia. Caso você não tenha visto o aviso no início da resenha, aqui vai de novo: este texto contém SPOILERS DE SILO. Sério, vocês não querem spoilers de Silo, então tomem cuidado.
Ordem é, na realidade, uma prequel de Silo, e conta a história da construção de organização dos 40 silos que abrigam o que restou da humanidade depois que a atmosfera da Terra se tornou tóxica. O livro é dividido em três partes. Na primeira, acompanhamos o trabalho de Donald, um arquiteto contratado pelo governo para construir gigantescos abrigos subterrâneos, sem saber qual será a finalidade deles. Intercalados a esses capítulos, temos também a história de Troy, um homem que acorda dentro de um silo sem entender qual a sua identidade ou o seu papel naquele lugar.
As partes seguintes do livro também têm esse formato de capítulos intercalados. Em cada uma, acompanhamos Donald e suas atividades no Silo 1, e ao mesmo tempo o autor nos conta uma história ocorrida dentro de algum outro silo – sempre algum silo em crise, uma sociedade à beira ou em processo de ruína.
Como é papel do Silo 1 comandar e controlar o funcionamento dos demais, sua organização é bastante diferente. Enquanto o primeiro volume da trilogia mostrou ao leitor tudo sobre as sociedades dos silos comuns, agora descobrimos um abrigo cuja existência se volta exclusivamente à manutenção da nova ordem estabelecida. Os homens desse silo viveram na Terra pré-apocalíptica, e passam centenas de anos trabalhando nos abrigos, graças a um sistema de turnos: cada homem trabalha por seis meses, e depois hiberna em sono criogênico por algumas décadas.
Como esperado pelos leitores, alguns segredos foram revelados neste volume, explicando alguns aspectos do mundo – por exemplo, o que gerou o apocalipse, e por que a atmosfera é tóxica. Mesmo quando revela esse tipo de informação, Howey mantém o clima de mistério no livro, e sua escrita prende o leitor – mas não por muito tempo.
Ao longo do livro, a narrativa vai cansando um pouco. Isso acontece, em parte, por causa de algumas falhas de escrita mesmo. Algumas delas não chegam a atrapalhar a leitura – são apenas cenas sem muito nexo, em que personagens vão conversar em algum lugar específico, não porque tivessem algo para fazer lá, mas porque isso deixaria a cena mais dramática e até cinematográfica. Mas o que atrapalha mesmo é a oscilação entre pontos de vista de personagem e narrador onisciente: algumas cenas de suspense, escritas no PDV do personagem, são estragadas por frases como “Ele estava tão distraído que nem olhou para trás”. Obrigada, narrador, agora eu sei que algo vai atacar o personagem por trás. Além disso, principalmente na primeira parte do livro, o autor utiliza metáforas demais, e faz questão de explicar todas elas para o leitor. Por exemplo, quando um personagem está jogando paciência, e logo em seguida encara uma situação que é parecida com o jogo, o narrador diz “era exatamente como o jogo”. São explicações desnecessárias, que pegam o leitor pela mão e acabam empobrecendo a narrativa.
Além desses problemas estruturais, a obra acabou me cansando porque não consegui me apegar a suas subtramas – as partes mais interessantes eram as que faziam qualquer referência ao volume anterior, e nesses momentos eu me empolgava à espera de qualquer informação que complementasse, diretamente, a história de Juliette. (E, sempre que achava essas informações, me sentia bem recompensada.)
O novo protagonista também não cativou. Donald está o tempo todo confuso e sofrendo por causa da existência dos silos e, ao contrário de Juliette, parece sempre se colocar na posição de vítima da situação. Até mesmo quando sai da inércia e toma atitudes drásticas, seu ponto de vista está cheio de lamentações.
Donald estava quase chegando à triste conclusão de que a humanidade havia sido lançada à beira da extinção por homens loucos em posição de poder seguindo uns aos outros, cada um deles achando que os outros sabiam aonde estavam indo.
(Parabéns, Donald, o leitor percebeu isso no volume anterior!)
De forma geral, a estrutura deste livro é um grande clichê pós-apocalíptico. Li parte do livro enquanto meu namorado jogava o começo de Fallout 4, e era impossível não enxergar um paralelo. Gosto muito da premissa de histórias apocalípticas com sociedades se abrigando embaixo da terra por várias gerações, mas é possível criar uma história assim sem cair na mesmice – como o próprio Howey demonstrou anteriormente.
Não bastasse tudo isso, depois de uma obra cheia de personagens femininas fortes e participativas, não faço ideia do que aconteceu com Howey, mas ele conseguiu escrever uma clássica ficção científica dominada exclusivamente por homens, em um mundo em que apenas homens tomam decisões, apenas homens têm conversas importantes, e apenas homens importam.
Isso fica explícito logo no começo do livro, quando é explicado que os trabalhadores do Silo 1 são todos do sexo masculino. Aparentemente, o idealizador desse sistema acreditou que, se mantivesse as mulheres e crianças hibernando (adivinhem? Em tubos de vidro!), os homens se concentrariam mais, trabalhariam melhor e, pasmem, não brigariam. Essa lógica completamente errada pressupõe que: 1) você enfia 500 homens dentro de um silo subterrâneo, e são todos héteros; 2) a única coisa que distrai os homens e causa brigas entre eles são as mulheres. De acordo com essa lógica, em vez de destruir as nações do planeta e jogar umas coisas tóxicas na atmosfera, os líderes mundiais (que coisa, a maioria são homens) poderiam ter colocado todas as mulheres para hibernar, e isso geraria a paz mundial.
Esse sexismo desnecessário e irracional me irritou logo nas primeiras páginas e não foi amenizado ao longo do livro. Para exemplificar quão problemática é a situação, fiz uma lista (COM SPOILERS LEVES) de todas as personagens femininas que aparecem na obra:
- uma esposa fiel, bondosa, paciente e desconfiada da traição do marido;
- uma sedutora ex-namorada que vai manipular tudo e todos para dar uns pegas no seu ex (que é o marido da moça do tópico acima, e que é claramente incapaz de resistir aos encantos dessa megera);
- uma mocinha sem personalidade, que aparece pouco e é a única que não leva tiros em uma cena de ação e está lá basicamente para chorar a morte dos seus amigos homens;
- uma velha bondosa, mas influente e cheia de terceiras intenções (a melhor personagem feminina do livro, o que não significa muito);
- uma pobre noiva prometida, esperando eternamente por seu homem;
- uma mulher em risco de vida, por quem um nobre homem vai morrer;
- uma militar fodona, matadora e inteligente que, é claro, nós vamos manter num tubo de vidro até que algum homem queira usar suas habilidades.
A péssima representatividade foi a cereja do bolo de decepção que encontrei neste livro cansativo e desnecessariamente longo. Uma grata surpresa é que, aparentemente, o terceiro volume da trilogia vai continuar exatamente onde Silo acabou. Isso significa que talvez eu nem precisasse ter lido Ordem, mas, agora que li, estou com medo de me aventurar por um terceiro volume e ter mais uma surpresa ruim.
*
Ordem
Autor: Hugh Howey
Tradutor: Edmundo Barreiros
Série: Silo
Editora: Intrínseca
Ano desta edição: 2015
512 páginas
Livro cedido em parceria com a Intrínseca.
Citações favoritas:
Era nisso que dava se lembrar. Aquele homem tinha despertado da rotina daquele abrigo que lembrava um hospício. Ele não havia enlouquecido, ele tivera um acesso súbito de lucidez.
*
“O fim está próximo…”
O pai dele riria e discordaria, é claro. Mission podia ouvir a voz do pai apesar de todos os níveis de distância, dizendo a ele como as pessoas tinham achado a mesma coisa muito antes dele e de seu irmão nascerem, que era a arrogância de cada geração achar que sua época era especial, que todas as coisas iriam chegar ao fim com eles. Seu pai disse que era esperança que fazia as pessoas sentirem isso, não medo. As pessoas falavam que o fim estava próximo com sorrisos mal disfarçados. Eles rezavam para que, quando morressem, não fossem sozinhos. A esperança era de que ninguém tivesse a boa sorte de vir depois deles e viver uma vida feliz sem eles.
*
Quando só se pode culpar Deus, nós o perdoamos. Quando se trata de outro homem, nosso irmão, nós o destruímos.
Olá, tudo bem? Poxa, eu to louco para ler esse livro. O “Silo” foi a melhor obra do tema apocalíptico que eu li no ano passado. Mas sua resenha me deixou um pouco triste com o autor. A Juliette é uma personagem fenomenal (até comentei dela no meu Top 5 personagens femininas de 2015). E fico triste em ver que o autor fez 😦
Eu ainda vou ler e tirar minhas próprias conclusões, mas espero de verdade que ele faça jus da fama que ganhou com o Silo e faça uma boa obra no terceiro volume da série.
Parabéns pela resenha super sincera.
Oi, Luciano! Obrigada pelo comentário. Apesar da chatice desse livro, ainda tenho esperanças para o próximo, já que ele retoma a história da Juliette.
Espero que você tenha uma experiência de leitura melhor que a minha!
Poxa, uma pena que não funcionou para você. Eu adoro a Juliette e fiquei meio triste em saber que ela não vai estar nesse segundo volume. Mas vamos lá né! Vamos encarar 😉