[Resenha] A história do mundo em 100 objetos

historiadomundoSinopse:

Em A história do mundo em 100 objetos, viajamos de volta no tempo e cruzamos o globo terrestre para ver como o ser humano moldou o mundo e foi moldado por ele nos últimos dois milhões de anos. A obra conta a história da humanidade a partir de cem objetos escolhidos no acervo do museu, todos de diferentes momentos da nossa jornada. O historiador Neil MacGregor nos conduz pelos mais variados artefatos que o homem produziu, concebidos cuidadosamente para diversos usos. Apresentando desde as tabuletas de argila para escrever até o onipresente cartão de crédito da atualidade, este livro é um olhar inusitado e profundamente revelador sobre a nossa civilização.

Fonte: Editora Intrínseca

Depois da proposta ousada, a coisa que mais surpreendeu quando esse livro chegou foi seu peso. Não sei exatamente por que eu esperava que ele fosse um pouco menor. Mas contar todo o percurso humano em 700 páginas de papel couché não poderia resultar em um livro pequeno.

Antes de começar a leitura, passei alguns dias folheando-o, pois cada item escolhido tem uma ou mais fotos e foi bem gostoso dar uma espiada no que me aguardava. Neil MacGregor, o autor, é nada menos que o diretor do British Museum. Ele se propôs a selecionar estes 100 objetos para um programa de rádio da BBC homônimo ao livro, apenas com objetos do museu.

homo hidropodos - British Museum

Espécime de Homo hidropodos secando o pé em aquecedor do British Museum (à esquerda) e enfiando a mão em Pedra Roseta (à direita).

Ir ao British Museum é uma experiência que simultaneamente extasia e frustra. Quando estive lá, sabia que não conseguiria ver tudo, mas entrar lá foi um leve tapa na cara. Assim, é um alento saber que tenho uma pequena porção do acervo disponível para olhar quanto eu quiser.

Na introdução MacGregor explica os critérios que usou para a seleção. Ele divide o tempo da humanidade em 20 períodos, cada um com 5 objetos, e procurou manter as escolhas equilibradas entre as civilizações. Fala também sobre como é mais democrático contar histórias por meio de objetos: a história formal é sempre escrita pelos vencedores, e há muitas culturas não tiveram registros formais que sobreviveram ao tempo, além daquelas que sequer tiveram sistema de escrita.

Coisas assim importantes, sobre nós, nunca se saberão. As tabuletas de argila dos escribas, endurecidas pelas chamas de Troia, preservarão a contabilidade do palácio, cereais, ânforas, armas, prisioneiros. Mas não existem sinais para a dor, a felicidade e o amor. E isso me parece uma desgraça encomendada.
Do livro Cassandra.

Esse discurso também me fez pensar em como é interessante poder acessar fragmentos do cotidiano de pessoas que viveram de maneira tão diferente da nossa, e mais ainda, acessar informações que não foram escolhidas pelos seus protagonistas para representá-los.

Coisas jogadas fora e perdidas dizem tanto sobre o passado quanto as que foram cuidadosamente preservadas para a posteridade.

Acessamos apenas aquelas que por um acaso sobreviveram à sua própria cultura e acabam por representá-la. Pensei bastante em que objeto da minha casa eu escolheria – possivelmente um marcador de páginas de couro – e no que sobreviveria alguns milênios e seria encontrado pelo futuro curador do Museu Pangaláctico – provavelmente meus post-its nada biodegradáveis.

A leitura progressiva de cada capítulo nos lembra que as nossas necessidades e as necessidades de nossos mais longínquos ancestrais em pouco diferiam. O que muda é a maneira como as sanamos, que por vezes fica mais sofisticada e, por outras, mais contraproducente. Seria impraticável mencionar todos os pequenos insights que esse livro me proporcionou, então apresento a seguir um breve apanhado.

Meu conceito de “machadinha” e “machado” mudou ao ver exemplares de ambos que não têm cabo. E é notável que o autor tenha mencionado os estudos neurológicos que verificam sobreposição entre as áreas do cérebro usadas para lascar pedra e as áreas da linguagem. Os poetas que comparam o ofício da escrita com o de um escultor estavam mais certos do que a metáfora presumia.

Falando em poesia, um de seus temas mais característicos, o amor, se apresenta a nós já no sétimo objeto da seleção de MacGregor, de 9000 a.C.: a estatueta dos amantes de Ain Sakhi, cuja utilidade prática nunca foi elucidada. De um ângulo são duas figuras humanas de gênero não explicitado entrelaçadas, de outros, tem as sugestivas formas de seios ou de um pênis. Talvez fosse um acessório ritual de fertilidade, talvez fosse um presente para alguém muito amado. O fato é que este objeto demonstra um grau de subjetividade e sofisticação que dificilmente atribuímos aos nossos antepassados que viviam em cavernas.

Mais adiante no livro e na história, precisei de cinco minutos de silêncio em respeito ao moço que passou tanto tempo olhando tabuletas de argila que aprendeu a ler a escrita cuneiforme da Tabuleta do Dilúvio. Isso não é razoável. O negócio tem uma textura de wafer.

tabuleta_wafer

Tabuleta do dilúvio ou bolacha wafer?

Falando em incredulidade, achei muito interessante descobrir que mesmo na década de 1990, na época da crise argentina, padres ainda eram procurados para avaliar apólices de reconhecimento de dívida, para que estas ganhassem mais credibilidade. Esta informação foi dada no meio de uma reflexão sobre a importância do crédito no mundo atual – e como nossa moeda corrente na verdade é o plástico e as abstrações. Isso vem no capítulo do cartão de crédito – ironicamente, um cartão gold.

O estilo da escrita é muito agradável. O autor contextualiza muito bem os objetos dentro de sua própria época e dentro da narrativa da história humana que constrói, abordando temas e hábitos muito diversos – sem deixar de passar a sensação de unicidade humana. Frequentemente ele se apoia em trechos de especialistas, que acrescentam credibilidade e profundidade aos fatos apresentados, mas sem academicismos desnecessários. Em vários momentos ele compartilha com o leitor alguns de seus privilégios de diretor do museu, contando qual é a sensação de tocar em algumas das peças, como o Machado de Jade.

A sensação que fica depois da leitura é de que dei um tour informal com alguém que é muito íntimo do British Museum – o que não deixa de ser verdade. É um bom livro para se deixar na mesa de centro de sua sala de estar (não levem por aí na mochila como eu fiz!), e folhear de vez em quando com as visitas. Mas recomendo a leitura contínua, pela bela construção narrativa que o autor faz com esses fragmentos de história.

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A história do mundo em 100 objetos
Autor: Neil MacGregor
Editora: Intrínseca
Ano de publicação: 2010
Ano desta edição: 2013
781 páginas

Livro cedido em parceria com a Intrínseca.

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Citações favoritas

Por que a morte está no coração das nossas cidades? Talvez uma explicação seja que, para preservarmos a riqueza e o poder que elas representam, precisamos estar dispostos a defendê-las de quem os cobiça.

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Enquanto isso, o desaparecimento total dessas grandes sociedades urbanas é um lembrete incômodo de como nossa vida citadina atual – na verdade, nossa própria civilização – é frágil.

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O que poderia ser mais doméstico, mais banal, mais britânico, do que uma boa xícara de chá? Poderíamos, é claro, inverter a pergunta e indagar o que existiria de menos britânico do que uma xícara de chá, levando em conta que o chá é preparado com plantas cultivadas na Índia ou na China e em geral adoçado com açúcar do Caribe. Trata-se de uma das ironias da identidade nacional britânica – ou talvez seja o mais revelador a respeito dela – o fato de a bebida conhecida mundialmente como a caricatura do britanismo não ter nada de nacional, mas ser o resultado de séculos de comércio global e de uma complexa história imperial.

4 respostas em “[Resenha] A história do mundo em 100 objetos

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