Esta resenha foi feita com base na edição em inglês da Beacon Press. A tradução de trechos foi feita por mim.
Sinopse:
Dana, uma mulher negra moderna, está comemorando seu 26º aniversário com seu marido quando de repente é transportada de sua casa na Califórnia para o Sul pré-guerra civil. Rufus, o filho branco de um fazendeiro, está se afogando, e Dana foi invocada para salvá-lo. Dana é levada ao passado repetidamente para esse lugar escravagista, e a cada vez sua estadia dura mais, é mais difícil e mais perigosa.
Fonte: Beacon Press
Dana é uma mulher moderna. Em 1976, ela acabou de se casar e está em sua casa nova na Califórnia, desempacotando a mudança, quando de repente sente uma tontura e… puf! Ela se encontra em um campo aberto ao lado de um riacho onde uma criança está se afogando. Ela salva a criança antes que possa sequer pensar em como foi parar ali. Poucos minutos depois, quando encontra os pais do menino, Dana… puf! Reaparece em sua casa.
O episódio é com certeza misterioso e causa confusão não apenas para ela, mas também para seu marido – que viu Dana desaparecer e reaparecer (apenas alguns segundos depois) diante de seus próprios olhos. Não demora muito para que o acontecimento se repita – desta vez, Dana vai parar dentro do quarto de um menino que está incendiando as próprias cortinas.
Logo ela deduz que:
- está, por algum motivo, viajando no tempo, sempre para o mesmo lugar e época (especificamente, para uma fazenda em Maryland, no início do século XIX);
- ela é sempre transportada bem a tempo de salvar da morte um mesmo garoto: Rufus, o filho dos donos dessa fazenda;
- embora, em sua perspectiva, o tempo entre uma viagem e outra varie entre alguns minutos ou horas, em Maryland passam-se vários anos.
Imediatamente, essas viagens loucas no tempo se tornam o centro da vida de Dana. Ela não tem nenhum controle de quando será transportada para o século XIX, nem de quando poderá voltar para sua casa e marido. Os dois passam a debater o assunto o tempo inteiro, tentando entender por que isso está acontecendo e como Dana pode se manter segura em uma realidade que é absurdamente hostil a ela.
Aviso aos leitores que este é um livro muito surpreendente e que minha resenha vai trazer alguns pequenos spoilers da trama. Não revelarei nada grave, mas, se você gosta de ler sem nenhuma informação prévia, sugiro que pare por aqui.
Não é preciso dizer que o século XIX (e, especificamente, o sul dos Estados Unidos) não é um ambiente seguro ou agradável para uma mulher negra. Dana vai parar em uma fazenda que usa mão de obra escrava, e, desde sua primeira viagem, vivencia na pele o que seus ancestrais viviam o tempo todo.
O garoto que ela salva, porém, é um menino agradável, que parece, a princípio, não ter preconceitos. Inclusive é amigo de uma garota chamada Alice, uma negra liberta que, como Dana logo descobre, é sua tataravó. Ao longo de suas estadias na fazenda, que se tornam cada vez mais longas, Dana se aproxima de Rufus e tenta educá-lo – ela tem a esperança de influenciá-lo e torná-lo melhor do que seu pai, um velho cruel que enxerga os negros como mercadorias e não pensa duas vezes antes de chicoteá-los e vendê-los. Para a tarefa de educar e condicionar Rufus, ela conta com seu marido, Kevin – que a acompanha em uma das viagens no tempo. Kevin é branco e, para se manter perto de Dana, precisa mentir que ela é sua escrava.
O garoto estava literalmente crescendo diante dos meus olhos – crescendo porque eu o vigiava e ajudava a mantê-lo a salvo. Eu era a pior guardiã possível para ele – uma negra para cuidar dele numa sociedade que considerava negros sub-humanos, uma mulher para cuidar dele numa sociedade que nos considerava eternas crianças.
Um elo quase imediato de confiança se forma entre o garoto e sua misteriosa salvadora, e vai crescendo à medida que os dois entendem que dependem um do outro para sobreviver (Dana por estar num ambiente hostil e Rufus por ser sempre ela quem o salva). Mas ao longo do livro vemos também o desenvolvimento da relação da protagonista com vários outros personagens – os escravos, Kevin, o fazendeiro e sua esposa.
Cada um desses relacionamentos é cheio de significados. Os personagens são complexos e muito bem construídos, em parte graças aos lapsos temporais, que nos permitem ver suas mudanças de caráter e personalidade a longo prazo. As mudanças em Rufus são as mais notáveis, e eu gostaria de dar um abraço na autora para parabenizá-la pela maestria na criação dele. Rufus é um personagem com muitas facetas – várias das quais nós talvez nem vejamos, considerando que o livro é narrado em primeira pessoa por Dana, que não está com ele o tempo todo – e cujo crescimento traz inúmeras mudanças, algumas mais sutis que outras. Suas atitudes, principalmente quando adulto, são muitas vezes reprováveis, mas suas intenções são dúbias para o leitor e as críticas a ele, suavizadas. Além disso, sempre fica um questionamento sobre a influência do meio – será que Rufus pode se tornar um homem bom e justo, independentemente do ambiente em que foi criado? E, na Maryland de 1800, quais as definições do que é ser bom e justo, quando se trata de lidar com negros?
Boa parte da relativização do caráter de Rufus vem do fato de que a obra é narrada em primeira pessoa pela protagonista, que, como mencionei, tem uma conexão emocional com o garoto. Isso a faz justificar certas atitudes dele, e causa confusão no leitor: às vezes eu queria esfregar a cara de Rufus no asfalto, mas no parágrafo seguinte a narradora já me acalmava. Mas a maravilhosa autora (que, caso vocês não saibam, também é uma mulher negra) deixa pistas para que o próprio leitor possa questionar o que está vendo e pensar por si próprio – por exemplo, quando Dana começa a perceber como é fácil se acostumar com e aceitar uma sociedade escravocrata, mesmo quando você foi educado em outra realidade. Isso assusta a personagem, e o leitor também, que começa a questionar não só quão complacente Dana está sendo, mas também quanto racismo nós mesmos praticamos e aceitamos.
[Kevin] correria um tipo diferente de risco. Um lugar como este o ameaçaria de uma forma sobre a qual eu não queria falar com ele. Se ele ficasse aqui durante anos, algumas partes deste lugar se prenderiam a ele. Não muito, eu sabia que não. Mas se ele sobrevivesse aqui, seria porque conseguira tolerar a vida aqui. Ele não teria que participar dela, bastaria que se calasse sobre ela.
Os preconceitos e as brigas causadas pela escravidão são retratados não apenas na relação com os brancos, mas também entre os negros. A obra traz muitos personagens negros, com diversas histórias e personalidades, alguns dos quais se tornam amigos próximos de Dana. Mas há também os que a odeiam, seja por seu jeito de falar e pelo fato de ela ser alfabetizada (o que, de acordo com eles, a torna mais branca do que negra), seja por sua proximidade com os donos da fazenda. Dana encara muitos preconceitos entre os escravos, que a fazem relativizar o próprio sofrimento (que já é bem pesado) e perceber quantos privilégios a educação formal pôde lhe dar e o quanto isso a afasta da situação dos outros negros.
A forma como o racismo é abordado é muito realista, e acaba sendo uma facada para o leitor. Tive uma experiência bem impactante quando me peguei pensando em parar de ler o livro simplesmente porque não aguentava ver o sofrimento dos personagens – afinal, se eu não estiver olhando, o sofrimento dos outros não me fere. Esse tipo de reação também é retratado no livro, por meio de Kevin – que é um homem moderno e antiescravidão, mas que também tende a fechar os olhos para o sofrimento dos outros.
– Eu quero falar com você sobre o lugar onde você dorme.
– Oh.
– Isso, oh. Eu finalmente subi lá e vi. Uma tábua velha no chão, Dana!
– Você viu alguma outra coisa lá em cima?
– O quê? O que mais eu deveria ter visto?
– Várias tábuas velhas no chão. Eu não estou sendo tratada pior do que nenhum outro escravo, Kevin, e estou bem melhor do que os que servem no campo. Os quartos deles não têm piso, e a maioria deles está cheio de pulgas.
A relação de Kevin com o passado é muito diferente da de Dana. Nos primeiros momentos, ele chega até a se empolgar com a possibilidade de assistir à história acontecendo de perto – e Dana tem que lembrá-lo que o sonho de viajar a tempos passados é um privilégio de homens brancos. A protagonista chega a temer o que o século XIX pode fazer com seu marido, e que estar cercado de escravagistas e escravos possa transformá-lo em alguém de quem ela não irá mais gostar. Em mais de um momento, fiquei com bronca de Kevin, que já começa o livro negando que a esposa tenha viajado no tempo (oi, gaslighting) e que, em geral, não é muito compreensivo com a situação dela. Precisei me lembrar que eles se casaram nos anos 1970 (e não nos anos 2000) e que, portanto, o tipo de relacionamento deles, embora evoluído demais para o século XIX, parece antiquado para o leitor atual.
Os conflitos entre Dana e Kevin são bem tensos para o leitor, mas não chegam a ter um papel central na trama. Isso me impressionou de forma positiva, pois o relacionamento entre os dois nunca é o foco das preocupações de Dana. Mesmo quando o marido toma atitudes que podem magoá-la, ela é uma protagonista feminina realista e forte, que se preocupa com problemas maiores (tipo a possibilidade de ser açoitada e vendida) muito mais do que com seu casamento, embora fique claro que ele seja muito importante para ela.
Por falar em relacionamentos, este livro deveria vir com dois trigger warnings: um para racismo e outro para relacionamentos abusivos. A autora é muito perspicaz ao escrever, por meio de dois personagens (que não revelarei quais são, para não dar spoilers) a forma como abusos podem acontecer num relacionamento e como a vítima é calada, culpada e obrigada a se acostumar a uma situação.
Todas essas questões (e os sentimentos causados por ela) acabam sobrepondo o mistério do fato de Dana estar FUCKING VIAJANDO NO TEMPO. Embora a questão seja muito intrigante (o livro inclusive começa com um flashforward pra te deixar ainda mais curioso sobre como tudo isso vai acabar), depois de um tempo eu acabei deixando de lado a minha curiosidade sobre essa questão. Em vez disso, só ficava ansiosa para saber como ela voltaria para casa da próxima vez, e torcendo para que as viagens acabassem logo e a personagem pudesse ficar em paz.
Este livro foi um dos melhores que li nos últimos tempos, mas também me fez chorar, ficar na bad e passar vários dias encarando o Word e me perguntando por onde começaria a escrever esta resenha. Eu poderia passar muitas horas conversando sobre todas as questões que ele levanta, principalmente sobre direitos da mulher e dos negros. Recomendo para todo mundo, e, para quem não lê em inglês, a editora Morro Branco acabou de anunciar que vai publicar o livro no Brasil. Leiam por favor. ❤
*
Kindred
Autora: Octavia E. Butler
Tradutora: Carolina Caires Coelho
Editora: Morro Branco
Ano de publicação: 1979
Ano desta edição: 2017
432 páginas
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Citações favoritas
Então, por algum motivo, me distraí com um dos livros de Kevin sobre a Segunda Guerra Mundial – um livro com memórias de sobreviventes de campos de concentração. Histórias de surras, fome, sujeira, doença, tortura e todo tipo de degradação. Como se os alemães tentassem fazer em apenas um ano o que os americanos praticaram por quase duzentos anos.
*
A essa altura, eu deveria estar acostumada ao impossível – assim como deveria me acostumar a ver homens brancos perseguindo mulheres negras.
*
– Esta é a maior baboseira abolicionista que eu já vi.
– Não, não é – eu disse. – Esse livro só foi escrito um século depois que a escravidão foi abolida.
– Então por que eles ainda estão reclamando?
*
– O que eu devo fazer?
Eu hesitei, balançando a cabeça.
– Não posso te dizer o que fazer. É o seu corpo.
– Não é meu – a voz dela baixou para um murmúrio. – Não é meu, é dele. Ele comprou, não foi?
*
Algum dia eu fugiria de novo? Eu seria capaz?
Eu me mexi, me contorci de alguma forma, deitando de lado. Tentei fugir dos meus pensamentos, mas eles ainda vinham.
Está vendo como é fácil criar um escravo? eles diziam.
*
– Acho que eu entendo por que as pessoas dizem que eu sou mais branca do que negra.
Carrie fez gestos rápidos acenando para o lado, com uma expressão incomodada. Ela veio até mim e esfregou a lateral do meu rosto com os dedos – esfregou bem forte. Eu recuei, e ela colocou os dedos na minha frente, mostrando-os. Mas eu não entendi.
Frustrada, ela me pegou pela mão e me levou até onde Nigel estava. Na frente dele, ela repetiu o gesto de esfregar meu rosto, e ele assentiu.
– Ela quer dizer que isso não sai, Dana – ele disse baixo. – A sua cor. Ela quer dizer que não importa o que as pessoas dizem, você é o que você é.
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