Sinopse:
Num futuro em que o Brasil é liderado por um fundamentalista religioso, o Escolhido, o simples ato de distribuir livros na rua é visto como rebeldia. Esse foi o jeito que Chuvisco encontrou para resistir e tentar mudar a sua realidade, um pouquinho que seja: ele e os amigos entregam exemplares proibidos pelo governo a quem passa pela praça Roosevelt, no centro de São Paulo, sempre atentos para o caso de algum policial aparecer. Outro perigo que precisam enfrentar enquanto tentam viver sua juventude são as milícias urbanas, como a Guarda Branca: seus integrantes perseguem diversas minorias, incentivados pelo governo. É esse grupo que Chuvisco encontra espancando um garoto nos arredores da rua Augusta. A situação obriga o jovem a agir como um verdadeiro super-herói para tentar ajudá-lo ‒ e esse é só o começo. Aos poucos, Chuvisco percebe que terá de fazer mais do que apenas distribuir livros se quiser mudar seu futuro e o do país.
Fonte: Seguinte
Em um futuro assustadoramente próximo, o Brasil é uma ditadura fundamentalista cristã. O presidente é um político que, desde seus dias de deputado, era famoso pelos discursos preconceituosos extremistas. Após uma crise política e econômica no país, sua popularidade aumentou e ele ascendeu ao poder com seus discursos que prometiam excluir as minorias e melhorar o Brasil para “as pessoas de bem”.
A São Paulo dessa época é bonita: o asfalto está novo e as ruas estão limpas. Mas as pessoas que caminham por elas são muito menos diversas, e muitas estão vivendo com medo. Não é mais permitida a prática de religiões não cristãs, e a diversidade sexual e as minorias étnicas são perseguidas. Embora o governo afirme que os direitos continuam iguais, grupos de fanáticos seguidores do presidente se encarregam de ir para as ruas expurgar a diversidade, e são encobertos pela vista grossa das autoridades e de grande parte da população.
Se reunir com os amigos, frequentar festas e até distribuir livros se tornaram atividades perigosas e até atos de resistência. E é isso que fazem Chuvisco e seu grupo de amigos de vinte e poucos anos. Juntos, eles praticam pequenos atos pacíficos de resistência, como ajudar ONGs ou incentivar a leitura, mas ao longo da trama acabam passando por grandes perigos e se envolvendo fortemente na luta contra o governo.
A história é contada no tempo presente e em primeira pessoa pelo protagonista Chuvisco. Seus amigos Amanda, Cael, Gabi, Pedro e Dudu são apresentados todos de uma vez, o que sempre me deixa um pouco confusa e afeta um pouco a minha empatia com os personagens, que, num primeiro momento, parecem apenas uma lista de nomes. Com o desenrolar da trama, vamos aprendendo um pouco mais sobre cada um deles e sua relação com Chuvisco, que é um dos pontos mais importantes da história – a amizade vai guiar e sustentar os personagens pelos dias mais difíceis da ditadura.
Essas amizades vão ser extremamente necessárias para Chuvisco quando ele salva um garoto de ser assassinado em uma travessa da Augusta e ele mesmo se torna um alvo procurado pelos fundamentalistas. Assustado e ferido, Chuvisco se vê numa encruzilhada entre se esconder para se manter seguro ou se envolver de forma mais ativa com os grupos de resistência. Ao mesmo tempo, se torna obcecado por Júnior, o garoto cuja vida ele salvou, e quer a todo custo reencontrá-lo.
Chuvisco tem surtos delirantes que ele chama de “catarses criativas”. Na maior parte do tempo elas são inofensivas e ele apenas vê pequenos elementos alterando a realidade, como borboletas voando em torno de seus amigos. Mas conforme o estado emocional do rapaz vai oscilando, as catarses evocam robôs gigantes destruindo a cidade ou tartarugas causando terremotos. É interessante ver um protagonista com uma condição psiquiátrica (meio retratada como superpoder), que entende a importância de receber tratamento e que confia no apoio dos amigos para retornar à realidade.
As catarses criativas dão um toque de fantasia à trama tensa do livro. O cenário apresentado por Novello é preocupante, porque você já teve amostras dele, seja na televisão, no Facebook ou até em almoços de família. O nosso Brasil parece estar prontinho para seguir na direção desta distopia, em que o povo ignora as opressões e as displicências do governo com questões sociais, contanto que a economia do país esteja bem.
Em meio a tudo isso, sobra espaço para falar de sexualidade. Os personagens do livro são bem diversos (vários deles bissexuais) e têm uma vida sexual livre e ativa. Chuvisco acompanha os rolos dos amigos como confidente, mas ele próprio tem uma relação mais distante com o sexo, para o qual não dá tanta importância. Gosto de como o livro trata com naturalidade não apenas o sexo descompromissado, mas também a falta de interesse por ele. Esse círculo de amigos é um refúgio quase absurdo em meio à ditadura, no qual tudo é aceito tranquilamente. Aliás, também é interessante mencionar que o autor incluiu um personagem transexual, retratado com respeito e naturalidade.
Ninguém nasce herói é uma distopia urbana perturbadora, pertinente e necessária ao Brasil de hoje. As belas metáforas e a leveza da escrita de Novello ajudam o leitor a adentrar nesse mundo para o qual é difícil de se olhar, mas que nos alerta sobre tantas coisas. É um livro que, no cenário que ele mesmo retrata, seria censurado.
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Ninguém nasce herói
Autor: Eric Novello
Editora: Seguinte
Ano de publicação: 2017
384 páginas
Citações favoritas:
São muitos parecidos, os mundos de ontem e de hoje. Quem não atenta aos detalhes pode pensar que permanecem os mesmos. […] A diferença não está no que se vê, está na ausência. Não nas calçadas e seus buracos costumeiros, ou no asfalto cada vez mais liso feito de borracha reciclada de pneus, mas nas pessoas. São Paulo perdeu a mistura, a heterogeneidade.
Meus passeios pela rua mostram turbas de clones, sempre iguais, sempre iguais. Os chapéus e barbas dos judeus ortodoxos desapareceram. A maioria deles saiu do país ou se adaptou a um visual discreto. As muçulmanas, que já eram poucas, agora se escondem sob outros véus. Os umbandistas não exaltam mais seu Xangô. O silêncio substituiu o orgulho efusivo dos candomblecistas. São Jorge abandonou as estampas de camisa e entradas de barbearia e foi se esconder na lua. Até os santos dos católicos, que pareciam inabaláveis, sumiram das prateleiras das papelarias, das barracas de bijuterias e badulaques.
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Num mundo doente, a imaginação é o alimento do medo, nosso maior inimigo. Basta um segundo de distração para ela começar a corromper o silêncio, transformar ruídos em ameaças, povoar as sombras com nossos piores pesadelos.
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