Sinopse:
A humanidade venceu a morte e todos podem rejuvenescer quantas vezes quiserem. Para controlar o excesso populacional, os ceifadores têm uma única tarefa: matar. A vida de Citra e Rowan, dois adolescentes de dezesseis anos, muda por completo quando se tornam aprendizes do ceifador Faraday – ao final do treinamento, só um deles será escolhido, e o outro, a sua primeira vítima.
Fonte: Seguinte
Confesso que se eu fosse julgar esse livro pela capa, não o teria escolhido. Demorei demais para perceber que o manto tem um rosto de perfil, espelhado pela foice. E essa é uma ideia bem legal que poderia estar mais evidente, especialmente por se tratar da história de dois adolescentes que estão treinando para disputar um cargo na profissão simultaneamente mais cool e ingrata do futuro: a de ceifador.
Como a sinopse entrega, é preciso fazer algum controle populacional nesse futuro indefinidamente distante, já que a humanidade está imune a tudo e é capaz de renovar os corpos indefinidamente. E cabe aos ceifadores a tarefa de coletar algumas almas vidas, em uma cota definida sob 10 regras comuns.
A construção de mundo desse livro me agradou bastante: a humanidade já não é regida por governos, pois a Nimbo-Cúmulo (uma evolução das nuvens virtuais) cuida de tudo. Ela monitora a distribuição de riquezas e pode te ajudar a escolher um presente de aniversário para um amigo, tamanha onisciência. É o depositório máximo de sabedoria humana que tomou consciência e cuida de todos o tempo todo. Todo mundo está bem okay com isso, e zomba-se do fato de que, na Era da Mortalidade, inteligências virtuais pareciam temíveis. Torço muito para descobrirem algo sombrio sobre a Nimbo-Cúmulo nos próximos livros da série.
Com a mortalidade ultrapassada, contar o tempo com precisão deixou de ser relevante a nível individual e social. As pessoas rejuvenescem e não sabem exatamente a própria idade. Um ano segue o outro sem nenhuma mudança sensível, exceto pela alteração arbitrária do animal que o nomeia. As pessoas não têm pressa para estabelecer suas ambições.
O único senso de religiosidade presente nesse mundo vem das seitas tonais, que sincretizam muitos elementos religiosos familiares a nós. Seu símbolo é um diapasão e, em um momento em que um dos personagens entra em uma de suas igrejas, é descrito um vitral com o que me lembrou um verme de Duna. Referência sutil ou viagem minha? Nunca saberemos. Os adeptos dessas seitas são vistos como excêntricos e tolos.
O fato é: vocês lidaram com esses parágrafos sobre o mundo porque demorei pra caramba pra me importar com os protagonistas.
Citra Terranova é determinada, inteligente e questionadora. Rowan Damisch é empático e esforça-se para ser medíocre e passar despercebido. Enquanto ela tem uma família amorosa e atenciosa, Rowan é constantemente negligenciado. A narrativa é contada alternadamente do ponto de vista dos dois personagens, cujas personalidades se delimitam com suas reações aos acontecimentos. E os contrastes entre elas vão se evidenciando quando o honorável ceifador Faraday os coloca sob seus cuidados para treiná-los para a Ceifa.
Apesar de ser literalmente um assassino profissional, Faraday é um cara bacanérrimo. É fiel às estatísticas da nossa era para escolher que tipo de pessoa coletar, conversa com os coletados e escolhe seus métodos sem crueldade. Tenta ensinar para os seus aprendizes o peso de cada morte, se utilizando inclusive de arte dos tempos em que todos eram mortais. Ele ensina pelo exemplo que a vida de um ceifador implica em sacrifício, uma compensação moral por todas as vidas que tira. Apesar de receber bajulações diversas – pois, além do temor de ser o único perigo real, os ceifadores podem conceder imunidades à morte quando quiserem –, Faraday vive uma vida despida de luxos. Uma pessoa ponderada e responsável. Mas mais legal que ele é a ceifadora Curie, com quem temos pouco contato inicial. Cada capítulo se inicia com um trecho de diário de um ceifador. E esse é outro detalhe que gostei bastante: os ceifadores são obrigados a manter um diário para registrar seus pensamentos. Em parte para compensar o fato de serem os únicos que não conseguem acessar a consciência da Nimbo-Cúmulo (que não interfere em assuntos da Ceifa), em parte para se manterem sensíveis ao que fazem.
Muitos desses trechos de diário são de Curie (notaram que os ceifadores têm nomes de cientistas célebres? Outra coisa que gostei bastante), e neles há discussões éticas e angústias que achei bem pertinentes. Em alguns dos primeiros capítulos do livro, ansiei para ultrapassar a trama e chegar a mais um trecho escrito sob sua ótica. Mais adiante vemos a personagem em ação e ela perseverou como minha favorita do livro.
Em meio a um bocado de intriga política, vemos Citra e Rowan se forçarem a amadurecer – especialmente quando se veem afastados dos conselhos sensatos de Faraday e precisam confrontar diferentes ideais de ceifador.
A narrativa é agradável e tem vários pontos com humor bem cítrico, apesar de toda a história tratar da problemática da morte – o que é bem coerente para um YA. Apesar de ter gostado bastante das reviravoltas que encaminham o final, achei o desfecho em si muito apressado. E mesmo com toda essa pressa, o livro termina com muitas pontas soltas. Espero que os próximos sejam um pouco mais fechados em si!
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O ceifador
Série: Scythe – volume 1
Autor: Neal Shusterman
Tradutor: Guilherme Miranda
Editora: Seguinte
Ano de publicação: 2017
442 páginas
Exemplar cedido pela editora Seguinte.
Citações
“Demorar aqui e prestar condolências são coisas diferentes. Vou ao funeral de todos os que coleto.”
“É uma regra dos ceifadores?” Rowan perguntou, pois nunca tinha ido a um funeral.
“Não, é a minha regra” ele disse. “Se chama ‘decência’.”
*
“Como eu disse, sua memória vai existir na Nimbo-Cúmulo. Seus entes queridos vão poder conversar com ela, e sua memória vai responder.
“Sim” ela disse, ficando um pouco agitada. “Mas e quanto a mim?”
Então a coletei. Só depois que ela se foi, respondi:
“Não sei.”
*
O que mais desejo para a humanidade não é a paz, o consolo ou a alegria. É que ainda morramos um pouco por dentro toda vez que testemunhemos a morte de outra pessoa. Pois só a dor da empatia nos manterá humanos. Nenhum Deus vai poder nos ajudar se algum dia perdermos isso.
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