[Resenha] Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço

mariabonitaSinopse:

Nos anos 1920, mulher decente não largava o marido, quanto mais para fugir com cangaceiro. Mas Maria Bonita não seguiu as regras. Abandonou o casamento para se juntar ao bando de Lampião, passou fome, sede e foi constantemente perseguida pela polícia. Sua história desfaz a ideia de que, no cangaço, homens e mulheres tinham direitos iguais. Abusadas sexualmente, desrespeitadas em seus direitos mais fundamentais, dentro ou fora do bando as mulheres viviam subjugadas aos desejos dos homens.

Fonte: Objetiva

Como não só de ficções deprimentes vive uma leitora, fiquei empolgada ao ter em mãos esta não ficção deprimente. Maria Bonita é um trabalho jornalístico incrível de Adriana Negreiros, que investigou a história do cangaço para compor uma biografia completa e realista não apenas de Maria de Déa (nome usado pela esposa de Lampião ao longo de toda a vida, só tendo recebido a alcunha de Maria Bonita na época de sua morte), mas de todo o movimento liderado por Lampião. Tudo isso com uma linguagem acessível – por vezes usando expressões típicas do Nordeste –, em um texto fluido, mas também com inúmeras referências bibliográficas que embasaram a pesquisa.

O cangaço é até hoje polêmico, por vezes visto como um movimento popular de resistência (quase como se Lampião fosse um justiceiro do povo oprimido), e por vezes como uma ameaça à ordem e à segurança no Nordeste. Maria Bonita desmistifica isso, contando em descrições explícitas a violência extrema praticada pelos cangaceiros (motivada por ganância, demonstração de poder, vingança ou puro sadismo), mas também aquela cometida pela polícia nos mesmos municípios. Essa brutalidade é ilustrada por algumas das fotos presentes no livro. Entre elas há a imagem de uma mulher marcada a ferro, no rosto, por um cangaceiro, além da famosa foto dos “troféus” da emboscada que matou Lampião: as cabeças de onze cangaceiros, expostas em praça pública junto com seus pertences e armas.

 

Pesquisar sobre o cangaço é se deparar com violências absurdas, que mais parecem saídas de filmes de terror. Em dois anos de investigações sobre o tema, entretanto, nenhuma dessas terríveis cenas me chocou tanto quanto a mais incômoda das constatações: a de que os relatos das cangaceiras sobreviventes a Angico são geralmente desacreditados em relação à extrema brutalidade da qual foram vítimas.

 

Toda a violência, o dia a dia e a glamorização do cangaço é narrada de uma perspectiva feminina; com foco não apenas em Maria de Déa, mas em outras cangaceiras, algumas reféns da violência e até esposas de policiais. O leitor fica sabendo da trajetória e do dia a dia das cangaceiras, em sua maioria sequestradas, estupradas e forçadas e se juntar ao bando como mulheres dos cangaceiros. O termo “sua mulher” se encaixa bem aqui: no cangaço, elas não tinham direitos e eram consideradas propriedade dos maridos. Quando o marido morria, os demais cangaceiros podiam negociar ou disputar entre si a posse da viúva.

Maria de Déa tinha um papel privilegiado no bando – se juntou a Lampião por opção, seduzida pelo papel de rainha do cangaço, e era a mais respeitada e a que ditava as regras para as outras mulheres, e às vezes até para os homens. Isso não a poupava de muitos dos sofrimentos da vida no bando. Maria passou fome, dormiu ao relento, fugiu da polícia, foi baleada e, como muitas de suas companheiras, teve diversas gestações e partos em meio ao sertão, para depois ser obrigada a doar seus recém-nascidos. Os relatos sobre essas experiências são alguns dos mais tocantes do livro.

A autora apresenta o contexto histórico da época ao longo da obra, relatando qual era a situação da mulher na sociedade brasileira (e comparando a realidade do sertão e das grandes capitais). Isso envolve citações bizarras de revistas e informações como o fato de que as primeiras eleitoras do país tiveram seus votos descartados pelo governo federal. Tão incômodo quanto isso é ler sobre uma vertente de medicina que buscava associar traços fenotípicos à propensão à criminalidade. Esses médicos fizeram análises extremamente racistas (e populares) sobre os cangaceiros.

Em meio a tantos horrores, algumas histórias pitorescas e até divertidas também surgem no livro. É o caso do relato sobre o fotógrafo Benjamin Abrahão, que conseguiu permissão de Lampião para acompanhar o bando, fotografando-os e filmando-os para um filme e até para anúncios publicitários. Algumas de suas fotos presentes no livro flagram momentos íntimos e descontraídos do rei do cangaço e de seus companheiros. Mas isso não alivia o peso dessa leitura – é preciso estar com estômago forte e paz de espírito para passar por todas as descrições da violência extrema presente na história do cangaço.

Uma curiosidade: o capítulo final trata do destino dado às cabeças de Lampião e Maria de Déa após sua exposição como troféus. Fico me perguntando quão rara é uma biografia que acompanha até mesmo a decomposição dos restos mortais dos biografados.

*

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Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço
Autora: Adriana Negreiros
Editora: Objetiva
Ano de publicação: 2018
296 páginas

Exemplar cedido pelo Grupo Companhia das Letras

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