[Resenha] A canção de Aquiles

Esta resenha foi feita com base na edição da HarperCollins Publishers. Todas as traduções de trechos do livro e de entrevistas foram feitas por mim.

capa_tsoa Sinopse:

Baseada na Ilíada, esta obra é uma reconstituição da épica Guerra de Troia. O tímido príncipe Pátroclo é exilado no reino de Fítia, onde cresce à sombra do rei Peleu e de seu extraordinário filho, Aquiles. Apesar de suas diferenças, os meninos logo se tornam companheiros inseparáveis. Os laços entre eles se aprofundam à medida que se tornam adolescentes e hábeis nas artes da guerra e da medicina. Quando se espalha a notícia de que Helena de Esparta foi raptada, os homens da Grécia têm de partir para invadir Troia e salvar Helena. Seduzido pela promessa de um destino glorioso, Aquiles junta-se à causa. Pátroclo, dividido entre o afeto e o temor por seu amigo, acompanha-o.

Fonte: Livraria Cultura.

A canção de Aquiles me foi recomendado na internet por fãs de Homero (sim, o fandom de Homero é uma coisa que existe!). Já adianto que foi uma das minhas leituras preferidas em 2013, então o resto desse post não será nem um pouco imparcial.

O livro conta a história de Pátroclo, o melhor amigo e companheiro do herói da Ilíada, Aquiles. Pra começar, ninguém precisa ter lido – nem conhecer a fundo – a Ilíada para entender e apreciar o livro de Miller (embora a edição da HarperCollins contenha um glossário de personagens para quem quiser saber mais). A autora compõe uma narrativa que se sustenta sozinha, construindo o mundo homérico quase como um universo fantástico. Isso é possível graças ao fato de a época de composição dos dois poemas épicos ser anterior às chamadas épocas “históricas” (aquelas das quais temos registros arqueológicos), de modo que a obra homérica é recheada de deuses e heróis. Qualquer recontagem da Ilíada que ignorasse a mitologia seria falha, e Miller não peca nesse aspecto. A mãe de Aquiles, Tétis, uma ninfa do mar, é uma das personagens mais marcantes (re)inventadas pela autora, que consegue lhe dar um aspecto verdadeiramente sobrenatural e assustador.

Aliás, logo de cara deve ser apontado que a escrita de Miller é primorosa em muitos aspectos. Há livros cuja prosa compensaria quaisquer outras falhas, e acredito que a maioria dos leitores de A canção de Aquiles reconhece a maestria narrativa de Miller. Enquanto lia, ficava dividida entre devorar as páginas, para saber o que acontecia em seguida (mesmo já sabendo…), e voltar a cada parágrafo, para repetir e saborear as palavras, metáforas e a paixão na escrita de Miller. Isso não quer dizer uma prosa difícil ou empolada. Pelo contrário: é a simplicidade das palavras que torna sua combinação um trunfo tão grande. Não surpreende que a autora – que, aliás, foi professora de latim e grego antigo, e é estudiosa da área – tenha levado uma década para completar o livro.

A obra é narrada por Pátroclo, uma personagem elusiva na Ilíada.

Ele é um mistério, na verdade. Então eu quis explorar a questão: quem é esse homem que significa tanto para Aquiles? – Madeline Miller, para o The Guardian

Essa indefinição deu maior liberdade a Miller em termos de construção da personagem, como também restringiu o foco de uma história que poderia ter se perdido entre tantas lendas existentes. Segundo a autora, “Foi aí que ter uma pessoa razoavelmente comum como meu narrador veio a calhar. Exceto por sua associação com Aquiles, os deuses gregos achavam Pátroclo completamente desinteressante e nunca se incomodaram com ele, então isso limitou bastante o alcance da [minha] obra” (Q&A with Gregory Maguire).

O Pátroclo de Miller não é nada desinteressante. É um garoto tímido, sim, e fisicamente mais fraco, mas com uma personalidade forte, altamente crível em seus medos e sentimento de inferioridade. Sua história é comovente desde o início, e sua normalidade forma um contraste vívido com a semidivindade de Aquiles.

Foi uma alegria descobrir o Aquiles de Miller. Sua visão de mundo se destaca entre os mortais tanto quanto sua força e habilidade. Aquiles é uma força da natureza, sobre-humano, implacável, excepcional. Nós o conhecemos juntamente com Pátroclo, que encontra nele primeiramente um objeto de inveja, e em seguida uma companhia improvável, que muda e determina o seu destino.

“Nunca vi ninguém lutar como você,” eu disse a ele. Confissão ou acusação, ou ambos.

“Você não viu muita coisa, então.”

Fiquei ofendido apesar da placidez do seu tom. “Você sabe o que quero dizer.”

Os olhos dele estavam impassíveis. Acima de nós, as olivas verdes balançavam suavemente. “Talvez. O que você quer dizer?”

[…]

“Quero dizer que…” Parei. Havia uma rispidez em mim agora, aquela sensação familiar de raiva e inveja, inflamada como uma faísca. Mas as palavras amargas morreram assim que as pensei.

“Não há ninguém como você,” eu disse por fim.

Ele me examinou por um momento, em silêncio. “E daí?”

Algo no modo como ele o disse esvaziou os últimos resquícios da minha raiva. Eu tinha me importado, antes. Mas quem era eu agora, para lhe invejar algo assim?

Como se tivesse me ouvido, ele sorriu, e seu rosto era como o sol.

O cerne de A canção de Aquiles é a história de amor entre Aquiles e Pátroclo. Apesar de alguns não aceitarem muito a ideia hoje, a visão desse relacionamento como romântico era comum na Antiguidade: muitos autores gregos e romanos o viam assim. Ésquilo e Platão inclusive discordavam sobre a questão (sério!)1. Miller diz, sobre o que a inspirou a escrever a obra: “Eu estava extremamente frustrada com uma série de artigos que li que continuavam a ignorar a questão do amor entre Pátroclo e Aquiles, que para mim parecia tão obviamente no coração da história” (Q&A with Gregory Maguire).

Por isso, o livro é, primordialmente, um romance. O leitor não deve esperar uma história de estratégias de guerra; o que importa para a autora são as personagens e como lidam com um destino selado pelos deuses e com circunstâncias que as forçam a tomar decisões grandiosas a despeito do amor.

É verdade que, em Homero, um relacionamento amoroso nunca fica explícito. No entanto, essa não é uma conclusão infundada. (Atenção: spoilers da Ilíada – sim, acredito em avisar! – a seguir. Se não quiser saber o final de A canção de Aquiles, pule para o próximo parágrafo!) Para Miller, “A evidência mais convincente, além da profundidade do luto de Aquiles, é como ele entra em luto: Aquiles se recusa a queimar o corpo de Pátroclo, insistindo em manter o cadáver em sua tenda, onde constantemente chora e o abraça – apesar da reação horrorizada de todos ao seu redor. Esse sentimento de devastação física me pareceu falar de uma intimidade verdadeira e total entre os dois” (Q&A with Madeline Miller).

Como já disse, não é necessário ter lido Homero para aproveitar A canção de Aquiles, mas eu tinha acabado de ler a Ilíada quando peguei este livro (na verdade, admito que me animei a ler esta última tendo em mente, e na prateleira, A canção de Aquiles). Foi fascinante ver como Miller recriou de modo tão intenso personagens sobre as quais só podemos, na maior parte, conjecturar. Ela se apoia em Homero, mas toma muitas liberdades nos espaços deixados pela Ilíada. Em suas mãos, Briseis ganha vida e personalidade. Seu Odisseu é particularmente engenhoso, exatamente como eu o imaginaria. Por outro lado, acho que deve ser impactante ler o livro sem conhecer a história em detalhes – aliás, a Bárbara fez isso e adorou! De qualquer modo, o livro é extremamente tocante e, apesar das quase 400 páginas, uma leitura rápida e intensa.

*

A canção de Aquiles
Autor: Madeline Miller
Tradutor: Gilson César Cardoso de Sousa
Editora: Jangada
Ano desta edição: 2013
392 páginas

Citações preferidas

Eu o reconheceria apenas pelo toque, pelo cheiro; eu o reconheceria cego, pelo modo como exalava o ar e como seus pés batiam na terra. Eu o reconheceria na morte, no fim do mundo.

*

“Eu irei,” ele disse. “Irei para Troia.”

O brilho róseo do seus lábios, o verde febril dos seus olhos. Não havia uma ruga em lugar algum no seu rosto, nada vincado ou envelhecido; tudo era fresco. Ele era a primavera, dourada e luminosa. A morte invejosa beberia do seu sangue, e se tornaria jovem outra vez.

Ele estava me olhando, seus olhos tão profundos quanto a terra.

“Você vem comigo?”

A dor infinita do amor e do luto. Talvez em alguma outra vida eu pudesse ter recusado, ter arrancado os cabelos e gritado, e tê-lo obrigado a tomar a decisão sozinho. Mas não nesta. Ele iria a Troia e eu o seguiria, até mesmo na morte.

“Sim,” sussurrei. “Sim.”

*

Talvez seja a maior dor, no final das contas, ser deixado na Terra quando outro se foi.

*

[1] “[…] a ideia de que Pátroclo era o eromenos é um erro tolo em que caiu Ésquilo, pois Aquiles era sem dúvida o mais belo dos dois, mais belo do que todos os outros heróis; e, como Homero nos informa, era ainda imberbe, e muito mais jovem […]” (Platão, Simpósio) Leia mais aqui sobre a noção de erastes e eromenos na Grécia Antiga.

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