Esta resenha contém spoilers do primeiro livro da série, Ship of Magic. Ela foi feita com base no e-book em inglês da Random House. A tradução de trechos foi feita por mim.
Enquanto as tradições dos Antigos Mercadores de Bingtown lentamente erodem sob a nova ordem de um governante corrupto, os Vestrits ansiosamente aguardam o retorno do seu navio-vivo. Mas o Vivacia foi tomado pelo implacável capitão pirata Kennit, que mantém o sobrinho de Althea e o pai do garoto como reféns. Althea e seu antigo colega Brashen resolvem recuperar o navio-vivo – mas seu plano pode se provar mais perigoso que deixar o Vivacia nas mãos ambiciosas de Kennit.
Fonte: Livraria Cultura
O negócio é o seguinte: Mad Ship recompensa o leitor pelo primeiro (e longo) volume da trilogia com uma história de tirar o fôlego. Personagens se encontram e crescem, mistérios são revelados e a trama se torna cada vez mais emocionante.
Esse também foi o primeiro livro que me fez chorar por causa de um navio, mas não vamos falar sobre isso.
A trama se foca em três núcleos principais: em Bingtown, acompanhamos Malta, sua mãe e sua avó enquanto navegam a difícil situação política da cidade; no Vivacia, o recém-tomado liveship conhece Kennit, Etta e a tripulação pirata do Marietta, e promove o encontro destes com Wintrow; e em torno do Paragon abandonado, Althea, Brashen e Amber se envolverão numa importante tarefa. Além disso, temos um relance das intrigas palacianas de Jaimaillia através do ponto de vista de Serilla, uma das chamadas “companheiras do coração” do sátrapa Cosgo. E continuamos acompanhando a migração das serpentes do mar – o que, nesse livro, faz muito mais sentido que no anterior, uma vez que várias questões, como mencionei, começam a ser respondidas.
De modo geral, a situação em Bingtown foi o meu núcleo menos preferido desse livro, mas coisas muito importantes acontecem na cidade, incluindo grandes reviravoltas na vida das mulheres Vestrit. Ronica e Keffria não têm tanto destaque neste livro como no anterior, mas Keffria pelo visto terá um papel importante no próximo.
Já Malta, no começo, parecia que me forçaria a ler mais capítulos intermináveis da sua angústia e revolta adolescente, mas para a minha alegria sua evolução nesse livro é bem satisfatória. Reyn Khuprus começa a cortejá-la, como ficou decidido no final do livro anterior, e no começo ela encara tudo como um jogo: manipulativa e infantil, quer apenas ganhar presentes do pretendente e fazer inveja às amigas. Mas, à medida que fica sabendo da situação da família – a falência das propriedades, mais o fato de que o Vivacia e seu pai foram capturados por piratas – a menina começa a crescer. Sua relação com Reyn se torna bem interessante, mas melhor ainda do que o afeto que ela começa a sentir por ele é a descoberta de que homens em geral são decepcionantes, e ela terá que se virar sozinha se quiser resolver seus próprios problemas. Sem dar spoilers, direi apenas que ela é a responsável pelo momento mais brilhante do livro.
Simpatizei com Reyn de cara, e seu lar no Rain Wild River e a cidade subterrânea de onde seu povo tira a wizardwood é central aos mistérios da trilogia. Suas declarações a Malta são bem fofas (se você ignorar a idade dela, ficam ainda melhor), mas ele é importante por si mesmo: a própria família acha que está perturbado, pois é obcecado com um tronco de wizardwood em que pensa haver um dragão. Obviamente, ele está certo, mas até lá vai sofrer bastante enquanto o dragão exige ser libertado – e esse dragão, aliás, é bem assustador quando se agarra a um humano e não o deixa em paz.
No Vivacia, deixamos Kennit com uma perna meio podre precisando ser arrancada, conforme o acordo feito por Wintrow. Depois de cenas horripilantes e sangrentas pra resolver isso aí (não quero nem lembrar), o pirata começa sua nova missão: seduzir o navio-vivo. Enquanto Vivacia começa a cair sob o charme do patife, Wintrow (meu querido) mantém-se desconfiado, e a relação complexa que surge entre ele e Kennit é uma das melhores partes do livro. Em grande parte deve-se ao passado do pirata, que começa a ser revelado aos poucos e o torna um personagem muito mais complexo e interessante. Fica claro que Kennit vê a si mesmo no garoto – ou talvez uma chance de redimir seu próprio passado – e o relacionamento deles muda bastante ao longo do livro (embora eu não tenha ficado muito convencida com a mudança de opinião que Wintrow tem em certo momento). E, é claro, a sorte do pirata continua forte, criando situações maravilhosamente esdrúxulas que o favorecem absurdamente. Adoro esses sucessos insólitos.
Etta, enquanto isso, torna-se uma mulher cada vez mais forte e incrível. O ponto de vista dela também é interessante por mostrar, mais que qualquer outro, a falta de compreensão entre as pessoas. Sua adoração a Kennit fica mais forte do que nunca, enquanto o pirata continua vendo-a como uma ferramenta, na melhor das hipóteses (para fazer ciúmes ao navio ou para um outro plano que é tão doentio – bem a cara do Kennit – que não vou nem mencionar pra não estragar a surpresa). Suas cenas com Wintrow estão entre as minhas preferidas.
As coisas no navio também não estão fáceis: os escravos resgatados querem tomar o navio para si, o que Kennit obviamente não quer deixar, enquanto Kyle (infelizmente) continua vivo. Porém, ele não ganha tanto espaço nesse livro pra falar – o que deve ter relação direta com o desfrute da obra, já que ninguém aguenta o Kyle falando.
Enquanto isso, Althea is back in town. Após reencontrar a família num festival de desentendimentos e acusações, ela percebe que não é uma mulher de família tradicional (não diga!) e decide agir para retomar o seu navio. Suas introspecções continuam consideravelmente chatas, mas são salvas pelo papel de Amber como interlocutora. Brashen, um personagem que não achei muito fascinante no primeiro livro, dá uma melhorada lá pra metade deste – mas não consigo me importar com o relacionamento deles, que fica naquele dilema de “gosto de você mas não podemos ficar juntos”. Pra piorar o drama, temos um… *respira fundo* triângulo amoroso entre os dois e Grag Tenira, filho de uma das famílias de Mercadores. Embora seja óbvio que Althea não vá casar com Grag, ela demora bastante tempo para chegar a essa conclusão. Mas, para ser justa, exceto por um sexismo casual, consequência da sua criação, Grag é até um cara legal. Só não entende Althea nem um pouco.
O que salva esse núcleo é a presença da minha personagem preferida: Amber, que toma um papel ativo nos conflitos entre Mercadores. Fico envergonhada em admitir que não percebi a verdade sobre a identidade da personagem no primeiro livro, o que nesse está bem mais óbvio (melhor personagem!!!). Enfim, a estrangeira toma um papel ativo na recuperação do Paragon, e o navio – o “mad ship” do título – alterna momentos de lucidez com aparente insanidade e trauma devido ao que quer que tenha acontecido no seu passado, enquanto continua o drama quanto à sua possível venda. A resposta a isso é um ponto central da trama. Amber é ótima, ajudando Althea, Brashen e até Malta terem algumas revelações sobre a vida, apesar da suspeita dos habitantes mais tradicionais de Bingtown por ser estrangeira. A relação com Paragon é muito legal, e a paciência que tem com o navio louco é tocante. Pra não mencionar que me identifiquei muito com a frustração da personagem quando é forçada a dividir um quarto com outras pessoas – os introspectivos vão se reconhecer!
E aproveito pra mencionar que amo Jek, a segurança de Amber dos Seis Ducados que não se impressiona nem um pouco com os costumes machistas de Bingtown.
Falando em machismo, enquanto em Ship of Magic a escravidão era um dos assuntos principais, nesse o foco parece ser mulheres e abuso – o livro trata bem mais explicitamente sobre estupro, em mais de uma ocasião, assim como abuso de poder da parte de homens mais velhos e/ou poderosos. A história de Serilla – embora ela não apareça tanto – tem muito a ver com isso. O legal é que sempre que o tema aparece, é para reforçar que homens abusivos são desprezíveis e dar às mulheres papel de protagonistas e mostrar sua história. É difícil não ver a mão de uma mulher por trás dos livros.
Mad Ship tem um clímax ainda mais emocionante que o do livro anterior e deixa uma das tramas abertas para ser resolvida no próximo livro. O legal desse volume é que – fora a narrativa bem ritmada e tudo o mais que já mencionei – ele revela alguns mistérios diretamente relacionados à Saga do Assassino, mostrando como o universo de Hobb é extenso, interligado e muito bem pensado.
Será que Liveship Traders vai seguir o caminho da trilogia Farseer, em que o segundo livro foi o melhor dos três? Talvez. Mas tenho certeza de que vou amar o terceiro volume, e estou louca para começá-lo.
*
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Mad Ship
Autora: Robin Hobb
Editora: Random House
Ano de publicação: 1998
E-book
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Resenhas da série Realm of the Elderlings:
Trilogia Farseer/Saga do Assassino: O aprendiz de assassino – O assassino do rei – A fúria do assassino
Trilogia Liveship Traders: Ship of Magic – Mad Ship – Ship of Destiny
Trilogia The Tawny Man: Fool’s Errand – Golden Fool – Fool’s Fate
Rain Wild Chronicles: Dragon Keeper – Dragon Haven – City of Dragons – Blood of Dragons
Trilogia The Fitz and the Fool: Fool’s Assassin ─ Fool’s Quest
Citações preferidas
“Vamos mostrar quem somos sem vergonha, e dizer que vivemos onde e como queremos – não por vergonha, mas por escolha. É isso que eu acho que devemos fazer.”
Jani Khuprus suspirou. “Você é muito jovem, Reyn”, ela disse simplesmente.
“Se quer dizer estúpido, diga estúpido”, ele sugeriu sem maldade.
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“Você não pode voltar”, ela afirmou simplesmente. Sua voz não era nem gentil nem rude. “Essa parte da sua vida acabou. Ponha-a de lado como algo que você terminou. Completa ou não, chegou ao fim. Nenhum ser decide o que sua vida ‘deveria ser’. […] Seja um homem. Descubra onde você está agora e parta daí, fazendo o melhor possível. Aceite sua vida e talvez você sobreviva a ela. Se resistir, insistindo que essa não é a sua vida, que aqui não é onde você deveria estar, a vida vai passar por você. Você pode não morrer por essa tolice, mas poderia muito bem estar morto considerando o bem que sua vida vai fazer a você ou qualquer outra pessoa.”
*
A iluminação era apenas a verdade na hora certa.
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“Amar não é apenas ter certeza da outra pessoa, saber o que ele abandonaria por você. É saber com certeza o que você está disposta a abandonar por ele. Não se engane; cada parceiro deixa alguma coisa para trás. Sonhos individuais são trocados por um compartilhado. Em alguns casamentos, a mulher abandona quase tudo que pensou que queria. Mas não é sempre a mulher que o faz. E esse sacrifício não é vergonhoso. É amor. Se você acha que o homem vale a pena, funciona.”
*
“Eu acho que há no coração de cada homem um lugar feito para a maravilha. Ele dorme dentro de cada um, esperando a completude. Durante a vida inteira, recolhemos tesouros para preenchê-lo.”
*
“Trell, Trell. Abra os olhos. Essa bagunça horrível é a sua vida. Não há sentido em esperar que melhore. Pare de adiar e só viva. […] Todo mundo pensa que coragem é encarar a morte sem recuar. Mas quase qualquer um consegue fazer isso. Quase qualquer um consegue segurar a respiração e não gritar enquanto morre. Coragem de verdade é encarar a vida sem recuar. Não estou falando de quando o caminho correto está difícil, mas será glorioso no fim. Estou falando de suportar o tédio e a confusão e a inconveniência de fazer o que é certo.”
*
Kennit sabia a verdade. Ninguém tem tão pouco que outra pessoa não consiga achar alguma coisa para invejar. Pobreza e simplicidade não eram escudos contra a ganância dos outros. Se você não tinha nada para ser roubado, eles tomariam o seu corpo e o escravizariam.
*
“Mereça seu futuro, Malta Vestrit.” A artesã inclinou a cabeça para ela. “O que o amanhã lhe deve?”
“O amanhã me deve?” Malta repetiu, confusa.
“O amanhã lhe deve a soma dos seus ontens. Nada mais que isso. […] E nada menos. Às vezes as pessoas gostariam que o amanhã não as pagasse tão completamente.”
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