Esta resenha foi feita com base no e-book em inglês da Random House. A tradução de trechos foi feita por mim.
Bingtown é um centro comercial de mercadorias exóticas e lar de uma nobreza mercantil famosa por seus “navios-vivos” – embarcações raras feitas de madeira mágica, que amadurece e se torna seres sencientes. Agora o destino de uma das famílias mais antigas de Bingtown depende do navio-vivo Vivacia. Para Althea Vestrit, o navio é seu legado de direito. Para o jovem sobrinho de Althea, retirado de seus estudos religiosos e forçado a servir no navio, o Vivacia é um castigo.
Fonte: Amazon
Serpentes do mar batendo um papo: é assim que começa Ship of Magic. Robin Hobb sabe que você provavelmente leu a Saga do Assassino e se apaixonou, e por isso vai confiar no que quer que ela faça. Foi o meu caso. Serpentes do mar falantes? Beleza, vamos lá.
Ship of Magic é o primeiro livro da próxima trilogia passada no mundo criado pela autora, chamada Liveship Traders (algo como “Mercadores de navios-vivos”). Esses livros não continuam a história de Fitz, se passando numa região ao sul dos Seis Ducados – centrada na cidade de Bingtown e nas Ilhas Piratas –, mas li que alguns personagens e eventos têm conexão com a trilogia seguinte, que retoma a história de Fitz, então resolvi ler esta também. Não me arrependo: a escrita de Hobb continua maravilhosa e o universo e os temas desta trilogia já começaram ainda mais amplos e profundos do que os da anterior.
É mais fácil começar com o contexto: na cidade de Bingtown, cada família da nobreza possui os chamados liveships (que estou chamando de “navios-vivos”; não há tradução no Brasil ainda), que são embarcações feitas de wizardwood (“madeira mágica”) e que se tornam sencientes após a morte de três gerações em seu convés. A tal da madeira mágica é a coisa mais cara que você pode imaginar, e todas essas famílias ficaram endividadas por gerações até poder pagar pelos navios. (Os empréstimos foram feitos por um povo de uma região misteriosa, que em sua origem tinham laços de sangue com o povo de Bingtown e aparecem regularmente para cobrar a dívida. Ah, e eles são deformados por motivos mágicos não inteiramente explicados.) Pois bem, o pessoal de Bingtown tinha monopólios para negociar nessa região (chamada, aliás, de Cursed Shores – algo como Litoral Amaldiçoado, um lugar joinha), mas os tempos estão mudando e novos mercadores, que não se importam com as tradições da cidade nem conhecem seus complexos navios-vivos, estão invadindo o território – inclusive trazendo o costume de comprar e vender escravos, o que até então era proibido em Bingtown.
A trama se foca na família Vestrit. Quando o patriarca morre, o navio da família, Vivacia, construído há mais de 60 anos, desperta. A filha adolescente Althea pensa que o navio da família vai ficar sob o seu comando, uma vez que velejava há anos com o pai. Mas os pais decidem que será melhor passar toda a herança para a filha mais velha, Keffria, e seu marido, o capitão Kyle – para o horror de Althea. Kyle detesta a garota e a expulsa do navio, mas, como um liveship deve sempre ter um membro da família a bordo, tira seu filho mais velho de um monastério para torná-lo marinheiro. Wintrow é uma criança séria e espiritual que só sonha em voltar para o seu monastério, mas Kyle pretende moldar o filho num “homem de verdade” à força. Enquanto isso, em Bingtown, Keffria tenta lidar com a mãe, Ronica, uma mulher forte que está acostumada a comandar os negócios da família, e a filha Malta, uma garota rebelde que está louca para agir como uma mulher adulta. Ao mesmo tempo, o livro segue os passos de Brashen, marinheiro do Vivacia que também é expulso do navio com a chegada de Kyle, e Kennit, um homem impiedoso e egoísta que tem ambições de se tornar rei dos piratas e para isso pretende capturar um liveship.
Onde entram as serpentes do mar? Não sei ainda.
O livro é narrado em terceira pessoa do ponto de vista de vários personagens, e é tão grande quanto os outros de Hobb – o que pode desanimar um pouco no começo, especialmente porque maioria dos personagens é intragável. Não por culpa da autora: sem dúvida ela queria que eles fossem intragáveis, a fim de permitir uma evolução extensa (estilo As crônicas de gelo e fogo). Mas, no começo do livro, há muitos candidatos para mais chato.
Althea começa como uma garota mimada que tem pouca consideração pelos problemas alheios, embora termine o livro um pouco mais maleável, depois de muitos percalços. Senti a dor da garota por estar longe do seu amado navio e admirei sua força de vontade, mas ela não se tornou minha personagem preferida – assim como Brashen não me empolgou muito. Já a irmã de Althea, Keffria, me deixava louca com sua submissão ao marido e falta de mão firme (coisas que ela vai trabalhando ao longo das mais de 700 páginas da obra). Sua filha Malta, no entanto, é a pior: pense em Sansa Stark no começo de A guerra dos tronos (só que, ao contrário de Sansa, a evolução de Malta ficou para os próximos livros, e neste ela é apenas insuportável).
Já Kyle é simplesmente desprezível. Machista, controlador, manipulativo e abusivo, ele desconta a raiva nas pessoas ao seu redor, desconsidera a esposa como uma tola e despreza o filho. É um homem que só entende a lógica da ganância e tenta governar pelo medo. Talvez seja tão difícil ler sobre ele porque parece tão real.
Outro personagem desprezível, mas nesse caso fascinante, é Kennit. O pirata é totalmente egoísta e manipulador, mas muito competente – e ver como atinge suas vitórias e os riscos que corre para consegui-las é bem emocionante. Além disso, é hilário (de um jeito bem errado) o modo como as pessoas ao seu redor o amam, enquanto ele não sente nada por elas, vendo-as apenas como ferramentas para seu propósito maior. É o típico patife charmoso, e ao mesmo tempo que você torce para ele ser desmascarado, quer ver até onde vai sua sorte e habilidade.
Mas meu personagem preferido foi, de longe, o jovem Wintrow. Embora sua história tenha muitos momentos de angústia e introspecção que talvez entediem o leitor, amei o garoto e sua inteligência e bondade. É o personagem que mais tem que rever seus conceitos ao longo do livro, à medida que os preceitos religiosos que segue são confrontados pela realidade da vida – em que há pessoas cruéis e injustiças contras as quais nós muitas vezes somos impotentes. Wintrow tem que lidar com o pai abusivo, a violência e a hostilidade a bordo do navio, e a conexão inesperada e profunda com Vivacia (a qual ele não consegue decidir se é feita de alguma magia maligna), tudo isso enquanto tenta se agarrar à própria identidade e manter a fé em Sa. Aliás, adorei a religião de Sa. Enquanto a trilogia Farseer não tocava muito em religião, nestes livros ela aparentemente será um tema importante, e os preceitos religiosos que Wintrow tenta seguir na sua nova vida são bem bonitos e universais. Ver a evolução do personagem já nesse primeiro volume foi bem satisfatório.
Outro personagem incrível que merece uma menção: Amber, uma mulher misteriosa que tem uma loja de artigos de madeira em Bingtown – e que certamente vai lembrar o leitor de um personagem da Saga do Assassino. Ela cruza o caminho de Althea e faz amizade com um dos liveships.
Aliás, enquanto os humanos são muito problemáticos, os navios são incríveis. Eles adotam em parte a personalidade dos humanos que os “acordaram”, ou seja, da família que os construíram, mas uma grande questão explorada com a Vivacia é até onde eles têm uma personalidade própria. Vivacia e Wintrow têm uma relação complicada, uma vez que Wintrow é forçado a ficar a bordo e, por mais que não queira, se ressente dela por isso. Já ela depende dele e da conexão que eles têm, mas também é orgulhosa e não quer que o garoto só fique nela por obrigação.
Depois de Vivacia, o navio mais importante é Paragon, um liveship meio-enlouquecido que foi abandonado depois que toda sua tripulação morreu em circunstâncias ainda não inteiramente reveladas, mas que sem dúvida serão abordadas nos próximos livros. Não vou mentir: fiquei mais triste por esse navio do que por metade dos personagens. Ele está abandonado numa praia há trinta anos e crianças jogam pedras nele. E eu mencionei que é cego??? TADINHO.
Como mencionei, o livro lida com algumas questões complexas, em especial misoginia e escravidão. O papel das mulheres na sociedade de Bingtown é uma grande questão na obra, porque desde o estabelecimento das primeiras famílias na cidade até a época do livro, tornou-se “antiquado” que as mulheres trabalhassem – ou tivessem muita autonomia. Isso cria uma sociedade em que homens como Kyle se sentem não só no direito como na obrigação de comandar a casa e deixar as mulheres com pouco poder nas mãos. O desprezo e o abuso contra mulheres também transparecem em alguns momentos com Althea. Muitas das personagens da obra são mulheres e é bem legal ver a questão feminina – que não tinha tanto espaço na narrativa de Fitz – tratada tão bem pela autora, agora pelo ponto de vista das próprias mulheres. Não que elas ajam apenas em relação a questões de gênero: o ponto de vista de Ronica, por exemplo, é muito focado em como salvar os negócios da família e mantê-los a salvo dos credores, que querem “ouro ou sangue” em troca da dívida ancestral.
Já a questão da escravidão é outro ponto central da trama e uma das grandes surpresas da obra para mim. É em livros como esse que a relevância e a beleza da fantasia ficam evidentes para mim: Hobb escancara o horror da escravidão mostrando como ocorre a desumanização de pessoas, como isso é promovido pela religião e os poderosos, como pessoas comuns – e boas – podem se ver trabalhando dentro de um sistema maligno, e como crueldade gera mais crueldade. A autora faz um retrato poderoso e inteiramente verossímil da natureza humana e suas piores facetas.
Tudo isso faz com que o livro tenha um tom mais sério e pesado que os da trilogia anterior. O sofrimento quase ininterrupto dos personagens – e a chatice de alguns – também tornam essa uma leitura um pouco mais lenta (pra não mencionar o tamanho da obra, que acredito que podia ter sido um pouquinho menor). Porém, já tinham me avisado que os livros vão melhorando e os personagens passam por uma boa evolução, do que não tenho dúvidas (in Hobb we trust!). E nem mencionei a qualidade das descrições e da introspecção dos personagens porque já cansei de falar como a autora é boa nisso.
Adorei o universo de Ship of Magic, mas este livro é claramente o primeiro ato da história e os personagens ainda não me cativaram completamente. Porém, tudo indica que há muito a ser revelado e bastante espaço para os personagens atuarem e crescerem. Estou com grandes expectativas para o segundo volume!
*
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Ship of Magic
Autora: Robin Hobb
Editora: Random House
Ano de publicação: 1998
E-book
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Resenhas da série Realm of the Elderlings:
Trilogia Farseer/Saga do Assassino: O aprendiz de assassino – O assassino do rei – A fúria do assassino
Trilogia Liveship Traders: Ship of Magic – Mad Ship – Ship of Destiny
Trilogia The Tawny Man: Fool’s Errand – Golden Fool – Fool’s Fate
Rain Wild Chronicles: Dragon Keeper – Dragon Haven – City of Dragons – Blood of Dragons
Trilogia The Fitz and the Fool: Fool’s Assassin ─ Fool’s Quest
Citações preferidas
“Wintrow”, ele repreendeu suavemente. “Recuse a ansiedade. Quando você se revolta contra o que pode acontecer, negligencia o momento que tem para aproveitar agora. O homem que se preocupa com o que vai acontecer em seguida perde o momento atual por medo do próximo, e envenena o próximo com pré-julgamento.”
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Homens prudentes nunca confiavam na sorte. Mas Kennit havia decidido há muito tempo que um homem tinha que confiar em sua sorte para que ela crescesse. Era uma crença pessoal que ele descobrira por si mesmo e não via motivo para compartilhar com mais ninguém. Ele nunca atingira um triunfo pessoal sem assumir riscos e confiar na sorte. Talvez no dia que se tornasse prudente e cauteloso, sua sorte ficasse ofendida e o abandonasse.
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“Quem são vocês, eu me pergunto, criaturas de carne e sangue e osso, nascidas em seus próprios corpos e fadadas a perecer quando essa carne decai? E quando me pergunto essas coisas, sinto medo, pois vocês são tão estranhos para mim que não sei o que farão comigo. Mas quando um de vocês está por perto, sinto que são tecidos do mesmo fio que eu, que são apenas extensões de uma vida segmentada, e que juntos nos complementamos. Sinto alegria em sua presença, porque sinto minha própria vida se tornar maior quando estamos próximos um do outro.”
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“Por que você quer me dar um presente?” ela perguntou de repente. Seu olhar rápido notou o orgulho de Amber pelo seu trabalho. […]
“Eu gostaria de torná-la minha amiga.”
“Por quê?”
“Porque vejo que você passa pela vida em oposição a ela. Você vê o fluxo dos eventos e é capaz de dizer onde poderia se encaixar nele mais facilmente. Mas ousa se opor a ele. E por quê? Simplesmente porque olha para ele e diz ‘esse destino não me convém. Não vou permitir que me seja imposto.’.” Amber balançou a cabeça, mas seu pequeno sorriso mostrou que era um elogio. “Sempre admirei pessoas que conseguem fazer isso. São tão poucas. Muitas, é claro, reclamam e amaldiçoam as vestes que o destino teceu para elas, mas as apanham e colocam do mesmo jeito, e a maioria as usa até o fim de seus dias. Você… você preferiria sair nua na tempestade.”
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“Você fala como um Chalcedeano”, Wintrow observou. “Lá, até onde sei, ser uma mulher é só um pouco melhor que ser um escravo. Acho que isso é decorrência da antiga aceitação da escravidão por lá. Se você consegue acreditar que outro ser humano pode ser sua propriedade, está a um passo de dizer que sua mulher e filha também são propriedades, e de relegar a elas vidas convenientes a você.”
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“Não existem dragões”, Althea bufou de desprezo com a provocação.
“Ah, é? Não venha dizer isso pra mim, nem pra qualquer outro marujo que estava no litoral dos Seis Ducados alguns anos atrás.”
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Era uma divisão terrível, sentir tanta necessidade de alguém, e ao mesmo tempo sentir raiva porque a necessidade existia. Ela não queria existir como um ser dependente de outro para ter valor.
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