[Resenha] Ship of Destiny

Esta resenha foi feita com base na edição da Bantam Books e contém spoilers da Saga do Assassino e dos outros livros de Liveship Traders. A tradução de trechos foi feita por mim.

shipdestinySinopse:

Enquanto Bingtown desliza para o colapso total, a matriarca Ronica Vestrit, acusada de traição, busca um modo de unir os habitantes da cidade contra uma enorme ameaça. Enquanto isso, Althea Vestrit, sem saber o que acontece em Bingtown e com sua família, continua sua missão perigosa para rastrear e recuperar seu navio-vivo, Vivacia, do implacável pirata Kennit. Por mais ousado que seja, o plano de Althea pode ser em vão. Pois sua amada Vivacia enfrenta o seu confronto mais terrível quando o segredo dos navios-vivos é revelado.

Fonte: Livraria Cultura

Cara, sabe o que é ótimo? Dragões. Dragões são ótimos. Agora sabemos que aqueles de A fúria do assassino não eram dragões de verdade, e a diferença é notável. Quando Tintaglia saiu do seu casulo no final de Mad Ship, eu nem imaginava quão incrível ela seria. Como o primeiro dragão vivo em muitos e muitos de anos, seu objetivo principal é ajudar as serpentes a subir o rio das Rain Wilds até o lugar de sua metamorfose. Mas para isso ela vai precisar da ajuda dos humanos, essas criaturas tolas que nascem e morrem num piscar de olhos e têm várias preocupações idiotas, como acordos de comércio e o governo de cidades – e, no caso de Reyn Khuprus, o resgate de sua noiva perdida. Em troca de ajuda para encontrar Malta, Reyn promete ajudar o dragão a promover o nascimento de mais membros de sua espécie.

Mas mais importante que Tintaglia em si é o que ela significa para o mundo épico de Robin Hobb: como é apontado no livro, é a primeira vez em muito tempo que os humanos têm que lidar com criaturas livres dotadas de consciência e inteligência. Essa mudança de paradigma coincide, em Bingtown, com o colapso social e econômico após a invasão dos chalcedeanos. O livro narra a destruição e a reconstrução da cidade e de sua sociedade, que precisará se reformular e dar espaço a todos os seus habitantes se quiser sobreviver e evoluir.

Nesse cenário, os destaques são as mulheres: Serilla, que começa o livro hostil à família Vestrit e sob a influência de um mercador agressivo, demora um pouco para conseguir se impor (me deixando louca nos primeiros capítulos); e Ronica e Keffria, a primeira sempre forte e decidida apesar dos percalços, e a segunda inicialmente deprimida e desesperada com a suposta perda dos filhos mais velhos. No entanto, ao longo da obra a vemos se impor de jeitos surpreendentes (para quem não discordava do marido no primeiro livro, o que ela faz neste é inacreditável!), encontrando sua força interior e buscando uma vida para si mesma além de sua família.

Outra personagem que evolui muito é Malta. Se no livro anterior ela amplia seus horizontes, neste, sua trajetória a faz sofrer dificuldades físicas, desesperança e humilhações, e a menina tem que engolir o orgulho e usar toda a sua esperteza para se manter viva – ao lado de um companheiro que não faz nada para facilitar sua vida. Sim, ela e o sátrapa continuam juntos por boa parte do livro, e o rapaz insuportável até a faz entender por que sua mãe ficava louca com ela às vezes. Além de aprender a depender apenas de si mesma, Malta desenvolve seus talentos para se tornar uma grande negociadora, fazendo jus à família. E sua relação com Reyn continua fofíssima (novamente, é melhor se você ignorar a idade dela).

Falando em Reyn, sua busca com Tintaglia origina ótimos diálogos que mostram toda a incompreensão entre humanos e dragões. Tintaglia é orgulhosa e vê os humanos como formigas, essencialmente, mesmo que formigas eventualmente úteis. Hobb a escreve de um modo que te faz realmente temer pelos humanos em contato com ela: como controlar um ser tão poderoso, que conhece todo o passado do mundo e cujo simples olhar é suficiente para deixar um homem encantado? Lisonja é a forma mais eficiente, como descobre Selden. O garoto Vestrit, até então um personagem secundário daqueles que você até esquece que existem, se prova inesperadamente importante nesse livro. Por meio das interações com esses dois e outros, Tintaglia mostra que tudo mudou para os humanos.

Mas falemos do que todos aguardavam ansiosamente, inclusive eu: o encontro entre o Vivacia e o Paragon. No navio de Althea e Brashen, os planos têm que ser reformulados após a traição do primeiro-imediato Lavoy, e a solução é encontrada por Paragon. Não vou revelar a ideia do navio, mas está ligada com os conhecimentos que ele tem sobre Kennit (uma conexão que ficou óbvia ao longo do segundo livro). Neste, ficamos conhecendo toda a história trágica do passado do navio (e do pirata) e temos um reencontro dramático. Nunca achei que fosse ter tantas emoções sobre um navio fictício, mas aqui estamos nós.

Infelizmente, Althea e Brashen continuam com seu drama amoroso, com o qual eu ainda não me importo, por mais que goste dos dois personagens. Mas, tirando esses trechos, toda a história passada no Paragon é muito emocionante. Ao longo do livro, Althea aprende a lidar com a nova situação em que encontra Vivacia – muito diferente de quando a viu pela primeira e última vez – e Brashen assume responsabilidade pela sua vida. Aleluia. Amber, por sua vez, realiza um feito incrível do qual não posso falar por motivos de spoilers (mas que retomo lá embaixo, depois do aviso). Só digo que, se alguém ainda não descobriu a identidade da personagem, neste livro deve ficar bem claro.

Já no Vivacia, coisas dramáticas estão acontecendo – que podem resultar na própria morte do navio (!). Wintrow não tem uma evolução tão dramática quanto sua irmã nesse livro, mas se você pensar onde começou e onde termina a trilogia, vê que ele mudou radicalmente. Na verdade, o destino do personagem é meio “bittersweet”, se você pensar na vida de contemplação e arte que ele nunca teve a chance de ter. Já Etta sofre um grande baque, mas se prova a personagem forte e incrível que sempre foi. A relação dela com Wintrow fica mais profunda nesse livro, e eu simplesmente adoro como esses personagens tão diferentes passaram a gostar tanto um do outro.

Agora, Kennit. Gente, o que dizer desse personagem? Nesse livro ele faz algo imperdoável que parece ser o ponto mais baixo que pode atingir. Mas Hobb é genial: você pode odiá-lo, mas sabe como e por que ele chegou a isso. A tragédia do personagem é que ele escolheu não ter empatia, escolheu reprimir todas as emoções, porque aprendeu que sentimentos são uma fraqueza e o deixam vulnerável. Por isso mesmo é incapaz de entender a devoção e o amor que os outros sentem por ele, e por isso se torna o que mais abomina, o monstro do qual sempre fugiu e que tentou exorcizar por meio da nova vida e identidade que construiu para si. Só que o passado não morre, é claro. A tragédia é que não precisava ter sido assim. Eu posso ficar umas três horas discutindo a caracterização desse cara, mas em resumo: é um personagem fascinante e complexo e, para mim, o grande destaque de toda a trilogia.

Aqui é um bom ponto para notar algo incrível sobre Liveship Traders: a trilogia não apenas lida com estupro na história de vários personagens, como a trama inteira depende e gira em torno das consequências de abuso sexual. Nesse livro, mais que nos outros, a questão fica em primeiro plano. Aliás, aviso importante: há uma cena de estupro bem explícita nesse livro. E Hobb trata muito do silenciamento da vítima de um jeito bem duro de ler.

Considerações finais: ao contrário do final da Saga do Assassino, cujo último livro é bem diferente dos anteriores, Ship of Destiny continua o tom e o ritmo estabelecido nos dois primeiros – só mais épico e emocionante ainda. Só achei que faltou um pouco de resolução entre Kennit e Wintrow, considerando como o rapaz se tornou importante para o pirata nos últimos livros. Também discordei da resolução de determinado problema (que revelo abaixo, depois do aviso de spoiler). Mas, de modo geral, achei um final excelente para a trilogia.

O livro também explica o que origina as mudanças físicas no pessoal das Rain Wilds e faz revelações enormes sobre os Elderlings, que expandem a compreensão do universo de Hobb. Só por isso eu já recomendaria para fãs da primeira trilogia. Não pulem Liveship Traders! O mundo muda completamente ao final deste livro, e os próximos livros de Fitz sem dúvida lidarão com eventos que aconteceram nesses (na verdade, a cena final já antecipa o começo da próxima trilogia…).

Além disso, por si só são livros muito bem construídos, com uma prosa deliciosa de ler (como sempre é o caso com Hobb) e personagens inesquecíveis. Uma fantasia épica exemplar! Em seguida: trilogia Tawny Man!

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COMENTÁRIOS COM SPOILERS:

spoilers2

  • A AMBER TRANSFORMANDO O PARAGON NO FITZ, PARA TUDO QUE EU QUERO DESCER. Dando até um machado ~ornamental~ pra ele, e olhos castanhos, e o nariz quebrado. “Você o amava, não?” “É claro.” Alguém chama uma ambulância pra mim fazendo o favor.
  • A morte do Kennit foi rápida demais! Eu jurava que o Paragon o salvaria de alguma forma, mas não??? E ele nunca teve uma conversa final com Wintrow, depois de tudo o que foi dito sobre o garoto ser mega importante na sua vida. Aliás, Kennit: é muito problema psicológico pra um cara só, mdds. A cena de estupro da Althea foi uma das coisas mais horríveis que li nos últimos tempos.
  • Não esperava que Wintrow se tornasse o rei das Ilhas Piratas, mesmo que agora pareça inevitável. Meu filho querido, que orgulho! Ele e Etta são tão fofos.
  • Dragões que não toleram estupro: melhores dragões.
  • Aprovei o Paragon mentindo para Etta quanto ao Kennit amá-la ou não.
  • Não aprovei Paragon tirando a dor de Althea no final. Para mim, toda a questão do Paragon tirar a dor do Kennit era um aviso quanto aos perigos de não lidar com as suas emoções: e daí ele vai e faz a mesma coisa com ela?
  • Mesmo assim, como amo esse navio. Quando achei que ia afundar, fiquei tensíssima. E a luta entre os dragões nele? Demais!
  • Mencionei que a Amber esculpe o Fitz? kjsdfhjkdhjgkfdhjkgdf socorro preciso dos próximos

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Ship of Destiny
Autora: Robin Hobb
Editora: Random House
Ano de publicação: 2000
E-book

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Resenhas da série Realm of the Elderlings:

Trilogia Farseer/Saga do Assassino: O aprendiz de assassinoO assassino do reiA fúria do assassino

Trilogia Liveship Traders: Ship of MagicMad ShipShip of Destiny

Trilogia The Tawny Man: Fool’s ErrandGolden FoolFool’s Fate

Rain Wild Chronicles: Dragon KeeperDragon Haven – City of Dragons – Blood of Dragons

Trilogia The Fitz and the Fool: Fool’s AssassinFool’s Quest

 

Citações preferidas

Ela é, Althea pensou, desconfortável, o que eu finjo ser: uma mulher que não deixa seu sexo impedi-la de viver como quer. Não era justo. Jek tinha crescido nos Seis Ducados, e reivindicava essa igualdade como seu direito de nascença. Consequentemente, os homens a cediam para ela. Althea ainda sentia às vezes que precisava da permissão de alguém para simplesmente ser ela mesma. Os homens pareciam perceber isso nela. Nada lhe vinha fácil.

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“Esse é o desafio, Companheira. Pegar o que aconteceu com você e aprender com isso, em vez de simplesmente ficar presa por isso. Nada é tão autodestrutivo quanto a comiseração, especialmente a autocomiseração. Nenhum evento na vida é tão terrível que você não possa superá-lo.”

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Era a canção do vento que ganhara vida, e ela o moveu como nenhuma música humana jamais tinha movido. Falou a um lugar profundo dentro dele na língua do próprio mar, e Kennit reconheceu sua língua materna.

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Humanos. Eles nunca estavam satisfeitos, não importava o que você sacrificasse por eles. Se Brashen estava decepcionado com ele, era culpa dele. Por que Brashen não entendia que os primeiros a matar eram aqueles mais próximos a você, aqueles que você conhecia melhor? Era o único jeito de eliminar a ameaça a si mesmo. Onde estava a razão em matar um desconhecido? Desconhecidos não tinham interesse em machucá-lo. Isso sempre era feito melhor pela sua própria família e amigos.

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Etta tinha mudado, e ele fora parte da mudança. O modo como ela falava, o modo como pensava, refletia os livros que eles tinham compartilhado. Não era que ela se tornara mais sábia; a sabedoria brilhara nela desde o princípio. Mas agora ela tinha palavras para suas ideias. Ela fora como a chama de uma lanterna queimando atrás de vidro sujo de fuligem. Agora o vidro estava limpo e sua luz o atravessava.

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O terror subiu na garganta quando pensou que Jola poderia se virar e ver seus olhos marejados com lágrimas súbitas. Os sentimentos mudam, ele se lembrou com selvageria. Essa é a emoção de um garoto, as lágrimas de um garoto que não existe mais. Eu parei de sentir isso há muito tempo. Eu não sinto isso.

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“Que tempestade de emoções os humanos evocam, tudo na base da imaginação”, o dragão observou, condescendente. Em uma voz mais reflexiva, ela perguntou: “Vocês fazem isso porque têm vidas tão curtas? Contam a si mesmos histórias absurdas do que pode acontecer amanhã e sentem todas as emoções de eventos pelos quais nunca vão passar? Talvez para compensar os passados de que não se lembram, inventem futuros que nunca existirão.”

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“A vida não é uma corrida para restaurar uma situação anterior. Também não é preciso se apressar para encontrar o futuro. Ver como as coisas mudam é o que torna a vida interessante.”

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Ele hesitou. Se ele falasse e ela risse, seria pior do que a morte, do mesmo jeito como a vida é sempre mais cortante e dura que a morte.

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“Você não precisa de mim…” A descoberta a deixou atordoada. Ter percorrido todo esse caminho, trabalhado tão duro e perdido tanto, apenas para descobrir isso.

“O amor pode existir sem a necessidade”, Vivacia observou gentilmente.

15 respostas em “[Resenha] Ship of Destiny

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